"O que o Brasil fez na Rio+20 foi tentar diminuir ao máximo o componente ambiental e global da Conferência. E isso tem a ver com o fato de que a presidente Dilma e o núcleo do governo tem uma visão bem tradicional do desenvolvimento econômico, constata o sociólogo da UnB.
Uma das expectativas da Rio+20, a partir da discussão central da governança global, era a criação de um novo organismo ambiental internacional, que substituísse o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, e pudesse "definir estratégias normativas, avaliar os países e eventualmente punir países que não cumprem os compromissos assumidos”. A criação deste organismo não foi possível porque "a maioria dos países, com exceção da União Europeia, não quer ceder soberania nacional para desenvolver governanças globais”, diz Eduardo Viola.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o sociólogo avalia quais os foram os principais impasses e retrocessos da conferência e afirma que a crise econômica impossibilitou avanços significativos, mas ela "poderia ter favorecido a criação de um fundo de apoio para a transição e adaptação das mudanças climáticas dos países pobres”. Diante da terceira grande crise econômica, ele enfatiza que ela é ainda mais profunda do que as anteriores, pois "está relacionada à exaustão dos limites planetários”. "Essa visão é negada pelos grandes líderes mundiais, que querem recuperar a crise voltando ao passado, investindo em um crescimento convencional, quando se precisa superar a crise mudando radicalmente de paradigma”, assegura.
Em relação à mobilização da sociedade civil na Cúpula dos Povos, Viola acrescenta que elas contribuem para o debate, mas enquanto "não se tornarem maioritárias, não mudarão a dinâmica intergovernamental, porque os governos, em grande medida, representam as suas sociedades. O atraso do governo representa o atraso da sociedade na compreensão e enfrentamento dos problemas. Quando falamos da sociedade civil, estamos falando de uma sociedade minoritária, militante, consciente, muito preocupada com o bem público. Mas isso não representa toda a sociedade e a população mundial”.
Eduardo José Viola é graduado em Sociologia pela Universidade de Buenos Aires, especialista em Relações Internacionais pela Fundación Bariloche, mestre em Sociologia pela Universidade de Campinas – Unicamp, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, e pós-doutor em Economia Política Internacional pela University of Colorado. Atualmente é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília – UnB e coordenador da Rede de Estudos e Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Globais e Relações Internacionais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Antes da Rio+20, o senhor havia dado declarações de que a conferência não teria condições de ser bem-sucedida. Sua opinião se confirmou? Por quais razões a Rio+20 fracassou?
Eduardo José Viola – Sim, a expectativa se confirmou, inclusive foi um pouco pior do que eu imaginava. O primeiroaspecto que demonstra o fracasso da conferência diz respeito à eliminação da questão dos limites planetários do documento final. Essa discussão sobre os limites planetários estava no documento original, mas foi retirada muito provavelmente por pressão de vários países do G77, como a Índia, por exemplo. Essa era uma questão-chave na medida em que se fala de desenvolvimento sustentável, pois hoje existe um limite planetário, ou seja, a margem de manobra hoje é muito menor do que aquela de vinte anos atrás. São sete os limites planetários, e três já foram ultrapassados: as mudanças climáticas, a perda de biodiversidade e o ciclo de acumulação do nitrogênio.
O segundoponto que caracteriza a Rio+20 como um fracasso é o fortalecimento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, que é uma declaração genérica e vaga num momento em que se precisava de uma transformação muito forte para colocar-se em correspondência com as necessidades apontadas pela ciência do ponto de vista da governança ambiental global. Precisávamos de uma organização ambiental global não apenas como uma agência especializada das Nações Unidas, como propunha a União Europeia – a mais avançada que havia na mesa –, mas de uma organização tal ou mais poderosa que a Organização Mundial do Comércio – OMC, ou o Fundo Monetário Internacional – FMI. Não foi possível avançar nesse sentido porque a maioria dos países, com exceção da União Europeia, não quer ceder soberania nacional para desenvolver governanças globais. Nesse aspecto, o Brasil também se inclui. Então, falta uma organização internacional poderosa que possa definir estratégias normativas, avaliar os países, e eventualmente punir países que não cumprem os compromissos assumidos.
Os Estados nacionais, as populações e a opinião pública são mais nacionalistas. Hoje a defasagem entre a ciência e a opinião pública média do mundo é gigantesca, porque a opinião pública média trabalha mais ou menos como trabalha a mente humana média, que não é muito diferente de quando surgiu o homo sapiens. Ou seja, reage a ameaças imediatas muito tangíveis ou à imoralidade extrema. Esse tipo de coisa gera mobilização, revolta, revoluções. Agora, os limites planetários são ameaças complexas de médio e longo prazo, de difícil compreensão para a mente humana média. Então, a proporção de pessoas que conseguem compreender as ameaças globais e os limites planetários é muito pequena. Mas mesmo entre os cientistas que compreendem o problema, existem aqueles que não mudam suas atitudes e comportamentos em correspondência com o que estão compreendendo.
Objetivos do desenvolvimento sustentável
O terceiro ponto pelo qual considero a Rio+20 um fracasso diz respeito ao fato de não ter havido definição dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Novamente definiram um processo para negociar os objetivos do desenvolvimento sustentável num prazo de dois a três anos. Mas não se estabeleceu nenhum parâmetro para essa negociação. Os mesmos impasses que estiveram presentes nas negociações dos objetivos da Rio+20 nos últimos dois anos continuam presentes.
Economia verde
O quarto fator importante diz respeito à dificuldade de aceitar uma definição consistente, robusta e sustentável de economia verde, porque, por um lado, o conceito de desenvolvimento sustentável já é antigo, difuso e tem diversos significados. O conceito novo, que emergiu a partir de 2006, é o de transição para a economia de baixo carbono. Esse é um conceito preciso e consistente, porque tem métrica, mas ele é simplista, porque só avalia a questão do carbono, que é fundamental, mas não avalia o que seria uma economia sustentável, verde, tampouco considera a questão da água, da biodiversidade, do nitrogênio etc.
A ideia de definir uma economia verde, combinando o crescimento econômico dentro do espaço de operações seguro da humanidade, deveria levar em conta a economia verde de baixo carbono, mas numa perspectiva muito mais ampla. Entretanto, não houve o menor avanço nesse sentido, porque os países do G77, incluindo o Brasil, têm certa paranoia em relação à economia verde, porque pensam que ela irá servir aos interesses protecionistas dos países desenvolvidos. Se se definisse a economia verde em relação à definição científica dos limites planetários, e em relação ao princípio de equidade, que obviamente daria um espaço mais significativo para o crescimento econômico dos países pobres, menos para países emergentes, como Brasil e China, e quase nada para países desenvolvidos, a economia verde seria uma definição extraordinária.
ONU
A Rio+20 também confirmou o que já vinha sendo discutido, ou seja, de que o mecanismo das Cúpulas da ONU baseadas nas negociações de 200 atores diferentes, que devem estar de acordo num consenso mínimo comum de dominador, em vez de votação qualificada, não funciona mais. É uma perda de tempo. Esse tipo de conferência é hoje uma indústria de recursos.
Obviamente a Rio-92 foi importantíssima, porque aconteceu na saída da Guerra Fria, em que os problemas ambientais globais emergiam no mundo, e foi o primeiro momento no qual entraram no sistema internacional. Mas hoje, 20 anos depois, esse mecanismo precisa ser modificado. Pertenço a um grupo de cientistas que se chama Governança do Sistema Planetário, que publicou há três meses na revista Science um artigo muito importante que propõe uma reforma no sistema de governança global, difícil de realizar, mas necessária na agenda da humanidade, porque, do contrário, a humanidade não irá avançar.
IHU On-Line – Os países desenvolvidos argumentam que enfrentam uma crise econômica e que, por isso, não é possível avançar nas questões ambientais. A conjuntura internacional atual realmente atrapalhou o consenso de um documento final significativo e produtivo?
Eduardo José Viola – A crise econômica tem alguma significação, mas a crise poderia ter favorecido a criação de um fundo de apoio para a transição e adaptação das mudanças climáticas dos países pobres. Atualmente, o mundo enfrenta a terceira grande crise econômica mundial. A primeira foi em 1873, e terminou em 1890. A segunda iniciou em 1929, e terminou em 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Hoje estamos vivendo a terceira grande crise, que é profunda, e está relacionada à exaustão dos limites planetários. Essa visão é negada pelos grandes líderes mundiais, que querem recuperar a crise voltando ao passado, investindo em um crescimento convencional, quando se precisa superar a crise mudando radicalmente de paradigma. Mas essa visão é aceita por poucos países como os escandinavos, a Alemanha, a Coreia do Sul, e União Europeia.
IHU On-Line – Que lacuna fica aberta na Rio+20 em função do desinteresse de potências como China e EUA na temática ambiental?
Eduardo José Viola – Esse é um fator decisivo. Se China e EUA tivessem tido uma posição como a da União Europeia, teria havido avanços na Rio+20, porque o mundo é uma estrutura assimétrica de países. Hoje existem três superpotências: EUA, China e União Europeia. Somente estes países têm condições de liderar o mundo. Depois, existe outro grupo de países que tem condições de ajudar a solucionar os problemas, que é formado pelo Japão, Rússia, Brasil, Índia e Coreia do Sul. Posteriormente, há uma série de potências médias importantes, como México, Indonésia, Turquia.
IHU On-Line – Das potências econômicas que existem hoje, por que somente a União Europeia propõe a criação de uma organização ambiental mundial?
Eduardo José Viola – É porque os países da União Europeia já cederam soberania nacional para criar uma estrutura supranacional. Ou seja, todos eles tiveram de abandonar parte do nacionalismo e ceder soberania. E agora, para superar essa crise no plano econômico e financeiro, terão de ceder ainda mais soberania, porque terão de passar não apenas para uma unidade monetária, mas também para uma unidade fiscal. A Europa irá na direção dos EUA ou irá se desintegrar.
As guerras mundiais do século XX entre países tão próximos e com culturas similares geraram uma cultura do horror e do que não se deve repetir mais, como manter a soberania absoluta, como foi no regime iniciado em Westfália, no século XVII. Quer dizer, uma catástrofe profunda gerou uma mudança de mentalidade dos países europeus. Mas isso não aconteceu nem nos EUA, nem na China, tampouco no Brasil.
IHU On-Line – Criou-se uma expectativa, quando Obama foi eleito, de que os EUA pudessem mudar a perspectiva ambiental, mas isso não ocorreu. Caso Obama seja reeleito, a política ambiental dos EUA tende a mudar?
Eduardo José Viola – No ano de 2009, primeiro ano do governo Obama, os EUA aprovaram a Lei Watson de mudanças climáticas, que não foi aprovada no Senado, mas que foi aprovada na Câmara dos Deputados. Porém, o governo de Obama foi se debilitando rapidamente por causa da crise econômica, do aumento do desemprego, que são produtos do governo Bush. Assim, seu governo não teve mais possibilidade de iniciativa em novembro de 2010, quando foi alvo do Partido Republicano. As coisas podem mudar nos EUA, mas isso não depende somente da reeleição de Obama, mas também de maioria democrata na Câmara e no Senado. Além disso, Obama tem que escolher como prioridade as questões ambientais.
IHU On-Line – Qual foi o papel do Brasil na Conferência? Diria que o Brasil dialoga mais com a posição da União Europeia, dos EUA, ou ficou em cima do muro? Qual a posição internacional do Brasil nesse debate?
Eduardo José Viola – Trata-se de duas coisas. O documento original do Brasil, de novembro do ano passado, é muito atrasado em relação aos avanços conquistados nos anos de 2009 e 2010, que correspondiam à grande queda do desmatamento da Amazônia em 2005, ao fato de assumir compromissos voluntários de dramática redução da curva de crescimento de emissões, entre 2005 e 2010, e de criar uma lei de mudanças climáticas. Tudo isso representou um grande avanço, talvez o principal avanço da sociedade brasileira em termos ambientais. Para que esses avanços ocorressem, foi importante a contribuição de uma série de fatores, tais como a ação muito incisa do ex-ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, e a ameaça da candidatura presidencial de Marina Silva.
Participação brasileira
Agora, porém, a posição do Brasil na conferência foi bem mais conservadora, tentando separar totalmente o debate da mudança climática da Rio+20, tentando diluir o componente ambiental do evento, enfatizando sempre o componente social. Podem ver que o documento brasileiro falava do Programa Bolsa Família e não falava da lei de mudança climática. Isso nos dá uma ideia de como o documento foi enviesado na direção desenvolvimentista tradicional. O que o Brasil fez, em grande medida, foi tentar diminuir ao máximo o componente ambiental e global da Conferência. E isso tem a ver com o fato de que a presidente Dilma e o núcleo do governo tem uma visão bem tradicional do desenvolvimento econômico. O poder do Ministério do Meio Ambiente, hoje, é muito menor do que o era em 2009 e 2010, ou na época anterior de Marina Silva. Então, se vê que nos últimos dois anos que o Brasil adotou uma política industrial convencional de promover a produção do país, independentemente da condicionalidade da eficiência energética, pois tem um subsídio gigantesco ao lobby automobilístico.
No mesmo dia em que terminou a Rio+20, o Brasil eliminou um imposto sobre combustível para o transporte público. Investe-se somente no carro, e o problema do transporte público se tornou muito mais grave. O objetivo do governo é crescer economicamente, pois estão desesperados, porque não crescem.
Depois, durante a dinâmica processual da negociação, o Brasil optou pelo caminho de menor risco, ou seja, em lugar de tentar se colocar como o mediador da conferência e contribuir para a produção de um documento mais ambicioso, derrotando os setores mais conservadores, optou pelo consenso a qualquer preço, ou seja, um consenso do nada ou quase nada. Trata-se, portanto, de um documento que não tem a menor relevância, porque só reafirma o passado. E ninguém explica porque as decisões tomadas há muitos anos não se realizaram. Essa é uma posição não só do governo, mas do Itamaraty, porque a cultura do Itamaraty é avessa ao risco.
IHU On-Line – O senhor menciona a necessidade de criar uma organização poderosa do meio ambiente, com a introdução de limites planetários nas diversas atividades econômicas. Como seria essa organização e que limites para as atividades econômicas seriam necessárias caso pensássemos em possíveis soluções para as mudanças climáticas?
Eduardo José Viola – A primeira coisa fundamental é uma política massiva mundial de direitos reprodutivos da mulher, para se chegar a uma fecundidade responsável. Hoje, no início do século XXI, a única fecundidade responsável é a de dois filhos por mulher, ou menos. A população do mundo era 5.5 bilhões de habitante em 1992, e é de 7 bilhões atualmente, ou seja, houve um crescimento extraordinário. O Brasil não tem mais problemas com essa questão, porque a fecundidade brasileira é 1.8, porque avançou nos direito reprodutivos das mulheres. A história mostra que, quando a mulher tem educação, status de independência, ela quer ter poucos filhos.
Essa é uma questão fundamental em relação à sustentabilidade, mas que foi retirada da declaração da Rio+20, e nessa discussão os EUA tiveram uma posição muito progressista, por causa do Obama.
Crescimento
O segundo ponto fundamental é avançar na ideia de prosperidade sem crescimento. Ou seja, existem países que não precisam mais crescer significativamente em termos de matérias, em termos econômicos, no uso de energia, de recursos naturais, porque já têm populações estabilizadas, possuem boa infraestrutura. Então, eles têm de ir reformando as suas infraestruturas para torná-las mais sustentáveis. Através da "economia verde” esses países não precisam mais crescer no sentido tradicional; sua dinâmica econômica pode ser de contínua redução de emissões de carbono.
Os países de renda média têm de crescer ainda, porque são muito desiguais: parte da população tem um nível de vida, e outra tem outra. Mas esses países têm de crescer de um modo muito diferente de como cresciam no passado. Não pode ser um crescimento intensivo em carbono, tem de ser um crescimento baseado em novas tecnologias, em fontes de energias renováveis. Esse é o ponto-chave.
Os países pobres, em geral, enfrentam um problema muito grande de governabilidade, têm altíssima corrupção, muitos já estão falidos. Eles precisam de um grande apoio da comunidade internacional para construir governança.
IHU On-Line – A Rio+20 colocou mais luz ou mais sombra sobre a possibilidade de organização de uma governança ambiental global?
Eduardo José Viola – A Rio+20 foi, de um lado a Conferência Intergovernamental e, de outro, a conferência paralela da Cúpula dos Povos, incluindo os setores científico, empresarial e movimentos sociais. Eu participei de onze eventos paralelos durante duas semanas, do dia 8 de junho a 22 de junho. Havia pelo menos quatro mil eventos paralelos, tanto no Riocentro como em outros lugares do Rio de Janeiro, além da Cúpula dos Povos, no aterro do Flamengo.
Esses eventos mostraram uma vibração muito grande da sociedade em relação à consciência do problema ambiental, ao desapontamento da dinâmica governamental, e a tentativa de encontrar novos caminhos. Nesse sentido, essas conferências paralelas formaram forças reformistas internacionais, porque são praticamente transnacionais, atravessam todos os países. Mas até essas forças não se tornarem majoritárias, não mudarão a dinâmica intergovernamental, porque os governos, em grande medida, representam as suas sociedades. O atraso do governo representa o atraso da sociedade na compreensão e enfrentamento dos problemas. Quando falamos da sociedade civil, estamos falando de uma sociedade minoritária, militante, consciente, muito preocupada com o bem público. Mas isso não representa toda a sociedade e a população mundial.
Para responder em síntese a essa pergunta, a construção de governança global ficou mais longe, porque foi uma conferência inútil do ponto de vista intergovernamental, a qual pode gerar cinismo, o pior que pode acontecer. Há pessoas conscientes que já não acreditam mais em nada e se retiram da vida pública. Do ponto de vista não governamental, dos diversos segmentos não governamentais, essa conferência aumentou a capacidade de rede, a capacidade de empoderamento de todos esses setores e fez aumentar, mesmo que lentamente, as forças que são reformistas na direção de uma sociedade sustentável em escala global.
A questão dos limites e da desigualdade ficou fora da Rio+20. Entrevista com Ricardo Abramovay
IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
"Passar de quatro milhões para 6,3 milhões de automóveis produzidos anualmente, investir 700 bilhões de dólares em combustíveis fósseis e outros 250 bilhões em estradas, isso vai fazer certamente com que a economia brasileira cresça; mas será que é a melhor forma de responder às necessidades mais importantes de sua população?", pergunta o professor da USP.
"O conteúdo do documento final é especialmente preocupante, pois reflete a resistência governamental em reconhecer que não é possível manter universalmente o pé no acelerador do crescimento econômico (ainda que sob ares verdejantes) sem comprometer ainda mais a capacidade de os ecossistemas prestarem os serviços dos quais todos dependemos”, admite Ricardo Abramovay em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo ele, "o exemplo mais emblemático está no item referente à crise alimentar. O documento reconhece, com razão, a existência inadmissível da fome e a necessidade urgente de suprimi-la. Reconhece ainda que há recursos para isso. Mas em nenhum momento o documento diz que o sobrepeso e a obesidade, hoje, atingem mais gente do que a própria fome. Não o faz porque isso exigiria recolocar o grande desafio do sistema alimentar mundial que não é simplesmente o de produzir mais alimentos e sim vincular as políticas agrícolas às reais necessidades da saúde pública”, conta.
Ricardo Abramovay (foto ao lado) é professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo FEA/USP, pesquisador do CNPq e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp. Ele é autor de Muito Além da Economia Verde (São Paulo: Planeta Sustentável/Abril, 2012).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Numa frase, o que foi a Rio+20, em sua opinião?
Ricardo Abramovay – Uma importante mobilização social, com diálogos significativos entre atores diversos, mas incapaz de fazer com que os governos atenuem a defesa dos interesses constituídos nos quais se apoiam e que explicam o uso predatório que se faz hoje dos recursos ecossistêmicos.
IHU On-Line – Como avalia o papel desempenhado pelo Brasil na Rio+20, enquanto liderança global, a partir das suas expectativas?
Ricardo Abramovay – O Brasil reafirmou trunfos reais (referentes à sua matriz energética e ao declínio do desmatamento), mas não soube transformar estas conquistas em base para exercer uma real liderança em direção ao desenvolvimento sustentável. A solução para o documento final (cortar os pontos que estavam entre parênteses, ou seja, eliminar qualquer polêmica) mostra a imensa dificuldade em que se encontra a governança global contemporânea.
IHU On-Line – Manteve-se no evento a ideia de que temas ambientais são formas usadas para impor barreiras comerciais não tarifárias?
Ricardo Abramovay – Sim e este é um dos aspectos em que o Brasil poderia ter exercido liderança global de forma construtiva. É verdade que, da mesma forma que em outros países da América Latina e da África, as exportações de commodities têm um peso fundamental (e crescente) na economia brasileira. Se a opção é por não renunciar às oportunidades que estes produtos representam (o que é discutível, claro), então, no mínimo, seria fundamental uma firme declaração no sentido de que o sistema econômico mundial, hoje, não paga os custos ambientais desta exploração. Tais custos devem ser calculados e incorporados ao sistema de preços ou traduzidos em restrições, ali onde esta incorporação não for possível. Várias organizações empresariais já estão reivindicando isso. O estudo apresentado pela KPMG no final de 2011 mostra que, de cada dólar produzido na economia global, 41 centavos correspondem a custos ambientais não pagos, considerando apenas três fatores: mudanças climáticas, água e lixo. Várias organizações empresariais já perceberam que esta pode ser uma vantagem concorrencial, mas não é uma vantagem competitiva benéfica para os países que detêm estes recursos. O Instituto Ethos fez uma firme declaração nesse sentido. No encontro que ocorreu no âmbito do ‘Humanidade 2012’, no Forte de Copacabana, organizado pela Fiesp e pela Firjan, Ana Toni do Greenpeace, conclamou o setor privado brasileiro a apoiar a ideia de desmatamento zero e não houve nenhuma manifestação de que isso seria um absurdo ou de que isso travaria o crescimento do país por parte dos empresários ali presentes. Ou seja, nivelar o comércio internacional por cima (associando-o a cláusulas socioambientais que impeçam trabalho escravo, infantil e a degradação dos ecossistemas) é vantajoso sob o ângulo competitivo. O suposto temor de que o meio ambiente seja usado como barreira não tarifária exprime o peso dos interesses ligados ao que há de mais atrasado em setores e em países dependentes de exportações que se apoiam na exploração predatória de recursos ecossistêmicos.
IHU On-Line – Em que medida os grandes problemas socioambientais do século XXI (e suas possíveis soluções) foram contemplados nas discussões da Rio+20?
Ricardo Abramovay – Os dois maiores problemas socioambientais contemporâneos estão ausentes do documento final, embora estejam nos documentos que diversas agências das Nações Unidas (e não só o PNUMA), que prepararam desde 2011, em estudos das grandes consultorias globais (além do já citado da KPMG, a McKinsey e a PwC, também produziram estudos importantes) e em pesquisas feitas por grandes ONGs globais (WWF, Greenpeace, Global Footprint Network, por exemplo). O primeiro refere-se aos limites. É chocante que as palavras limites e fronteiras sequer apareçam no documento final da Rio+20. Ou seja, o ponto de partida de qualquer reflexão consistente sobre o mundo contemporâneo, o fato óbvio de que há fronteiras ecossistêmicas que já foram ultrapassadas, o que ameaça a vida social, simplesmente não está no texto. E, no entanto, o setor privado, as Nações Unidas e as grandes ONGs globais convergem no reconhecimento do perigo que o desrespeito a estes limites representa para as sociedades humanas. É compreensível que Ban-Ki Moon tenha expresso sua decepção (voltando atrás, logo após): não poderia ser maior o contraste entre o documento final e o texto que os experts convocados por ele produziram, no início de 2012 para a Rio+20. Não se trata apenas de linguagem, que é muito mais fria, é verdade, num texto a ser assinado por quase 200 países do que num trabalho de um grupo de consultores: trata-se de conteúdo. E o conteúdo do documento final é especialmente preocupante, pois reflete a resistência governamental em reconhecer que não é possível manter universalmente o pé no acelerador do crescimento econômico (ainda que sob ares verdejantes) sem comprometer ainda mais a capacidade de os ecossistemas prestarem os serviços dos quais todos dependemos.
O segundo problema socioambiental solenemente ignorado no documento é a desigualdade. É verdade que o termo "equitativo” aparece no documento muitas vezes e que há, ao menos, sete manifestações para que se reduzam as desigualdades. Mas tudo se passa como se a redução da desigualdade consistisse apenas em promover a emancipação social dos que se encontram na base da pirâmide, sem que, em nenhum momento, se faça menção ao poder sobre o uso dos recursos daqueles que, em todo o mundo e não só nos países desenvolvidos, respondem pela maior parte da pressão sobre os ecossistemas. O desafio da nossa geração não é apenas o fato de que hoje emitimos sete toneladas de gases de efeito estufa per capita (num total de quase 50 gigatoneladas, globalmente) e que temos que baixar este total para 2 toneladas em 2050 (num total de 20 gigatoneladas, quando o mundo tiver entre 9 e 10 bilhões de habitantes). O desafio é que, hoje, o consumo norte-americano, em média, corresponde à emissão de 20 toneladas per capita e o do indiano a menos de duas. Por mais que a inovação tecnológica avance (e tem que avançar muito, é claro) com este nível de desigualdade, ela, por si só, não dá conta do recado.
IHU On-Line – O debate sobre a redução do consumo e do crescimento, para além das inovações tecnológicas, foi contemplado na Conferência?
Ricardo Abramovay – Não. O exemplo mais emblemático está no item referente à crise alimentar. O documento reconhece, com razão, a existência inadmissível da fome e a necessidade urgente de suprimi-la. Reconhece ainda que há recursos para isso. Mas em nenhum momento o documento diz que o sobrepeso e a obesidade, hoje, atingem mais gente do que a própria fome. Não o faz porque isso exigiria recolocar o grande desafio do sistema alimentar mundial que não é simplesmente o de produzir mais alimentos e sim vincular as políticas agrícolas às reais necessidades da saúde pública.
O outro exemplo é o dos transportes e das cidades sustentáveis. Apesar do reconhecimento da importância de se fortalecerem os transportes coletivos, não há qualquer sinalização no sentido daquilo que o próprio bisneto de Henri Ford já reconheceu: é insustentável a expectativa de que a base da mobilidade contemporânea seja o automóvel individual. Por mais que se mude o combustível e mesmo com o automóvel elétrico, o uso de ferro, plástico, vidro e borracha, para produzir anualmente 70 milhões de carros, como ocorre hoje, é incompatível com algo que possa se assemelhar ao título do documento, "o futuro que queremos”.
IHU On-Line – Quem foram os grandes atores, os protagonistas da Rio+20?
Ricardo Abramovay – Empresas, organizações empresariais e, ao mesmo tempo, organizações não governamentais globais em diálogo com empresas, que acabaram propiciando a formulação de um amplo conjunto de propostas. Na verdade, existe uma aproximação entre estes campos sociais que em 1992 praticamente não tinham diálogo. Mas há duas ressalvas importantes. Em primeiro lugar, neste diálogo nenhuma das partes se descaracteriza: as empresas continuam tendo como objetivo central seus ganhos privados e as ONGs continuam sendo veículos de mobilização social. Mas há um enriquecimento mútuo, uma abertura a horizontes novos nestes contatos e, por aí, chances de mudanças sociais cujo alcance não está dado de antemão.
A segunda ressalva é que não se trata de propor a supressão ou o amesquinhamento do papel dos governos. Pelo contrário, por mais que haja empresas voltadas a novas formas de produção e até de consumo, são os governos que constituem os legítimos representantes da sociedade e cabe a eles a orientação estratégica deste processo. Nosso grande problema é que a ótica e o tempo dos governos parece ser ainda mais curto e mais limitado dos que os de muitas empresas, o que dificulta uma governança global voltada ao desenvolvimento sustentável.
IHU On-Line – E a rediscussão sobre o PIB? Foi contemplada? De que forma?
Ricardo Abramovay – Este é um dos pontos mais frustrantes do documento. O texto usa de forma recorrente uma expressão obscura (crescimento econômico equitativo) e a única menção à rica discussão sobre o PIB, objeto do relatório Stiglitz, de um relatório de pesquisadores da economia ecológica, produzido para a ONU, de trabalhos do Banco Mundial e da OCDE, é, no parágrafo 38: "reconhecemos a necessidade de medidas mais amplas de progresso que complementem o produto interno bruto”.
Em primeiro lugar, estes complementos já existem e vão desde o IDH às centenas de indicadores globais, nacionais e locais de bem-estar produzidos por organizações privadas, governamentais e até associativas. Mas, sobretudo, a questão não é só de medida: a questão é saber se o crescimento econômico (agora supostamente equitativo e verde) corresponde ao futuro que queremos. Por exemplo, passar de quatro milhões para 6,3 milhões de automóveis produzidos anualmente, investir 700 bilhões de dólares em combustíveis fósseis e outros 250 bilhões em estradas, isso vai fazer certamente com que a economia brasileira cresça: mas será que é a melhor forma de responder às necessidades mais importantes de sua população? É enganosa a ideia de que é preciso complementar o PIB: ele é uma medida errada a respeito do que é riqueza e a respeito da capacidade de a riqueza propiciar prosperidade. Isso foi completamente escamoteado do texto.
IHU On-Line – Quais poderiam ser citados como os principais objetivos para o chamado "desenvolvimento sustentável”? Eles estiveram em pauta durante a Conferência?
Ricardo Abramovay – Os parágrafos 245 a 251 referem-se a esse ponto. É positivo que sejam mencionados objetivos de desenvolvimento sustentável que devem ser "voltados à ação, concisos, fáceis de comunicar, limitados em número, globais e aplicáveis universalmente para todos os países, levando em conta realidades nacionais diferentes...”. Será formado um grupo de trinta especialistas que, em consulta com a sociedade civil e as Nações Unidas, devem apresentar um relatório para a próxima Assembleia Geral, propondo o que podem ser estes objetivos, com validade a partir de 2015. Se um documento destes conseguir estabelecer limites e horizontes de inovação para o uso do espaço carbono, da água, dos oceanos e do solo a partir de 2015, será um ganho muito considerável.